Para o entendimento de qualquer doutrina, não se pode desprezar o estudo do contexto em que nasceu.
Lendo e relendo quanto a entender a presença e o sentido da palavra religião nos livros da codificação, percebe-se em Kardec a grande preocupação em estabelecer a “inteligência” suprema de Deus, colocando, mesmo que, de forma cientifica, sobretudo filosófica, a essência de Deus sobre todas as coisas.
Coloca a palavra religião para repudiar a princípio o contexto dogmático e arcaico da igreja católica da época, nos auxiliando a entender que o sentido de religião estaria dentro de um processo de crescimento e de evolução necessário ao ser, na busca do entendimento de si mesmo, sem a dependência dos sacerdotes e rituais da igreja.
Reconhece no Espiritismo a sua potência em ser a ferramenta de aglutinação das ideias quanto ao futuro e também a sua função futura, no propósito de esclarecimento aos homens dentro de suas próprias crenças.
Uma visão surpreendente, livre de todas as raízes dogmáticas e sendo aceita e aplicada em qualquer estrutura religiosa, mas sem se tornar uma nova religião.
Esse entendimento não é algo fácil ainda hoje.
Kardec a sua época reúne ciência, filosofia e religião (como ele entende) e solidifica os laços entre razão e fé.
Ele faz criticas a religião e incorpora no espiritismo as contribuições da ciência, mas não joga fora a religiosidade humana e nem mata Deus e nem as conquistas da filosofia.
A ciência não precisa ser apenas uma investigadora do mundo material, pode ser também uma investigadora do mundo espiritual.
Assim pode se concluir que a própria Doutrina Espírita em seu contexto filosófico e cientifico deve ser constantemente atualizada em si mesma, pois haverá as devidas depurações declaradas pelos espíritos codificadores quanto a sua propriedade de mutabilidade a medida dos avanços no próprio entendimento humano.
O espiritismo faz a crítica da fé, a partir da razão, mas sem aferir-lhe a essência.
Em Obras Póstumas (1860) lemos: O espiritismo instituirá a verdadeira religião, a religião natural, a que parte do coração e vai direto a Deus, sem se deter as abas de uma sotaina (batina) ou nos degraus de um altar.
A atitude de Kardec diante das religiões é bastante original, encontrando pouquíssimos paralelos. Por isso até hoje não foi compreendida, inclusive por muitos dos seus seguidores.
O que ele de fato pretende segundo afirma explicitamente é fornecer um substrato sólido que sirva de apoio a todas as religiões.
Comprovando a existência do espírito, pensava Kardec, o espiritismo reforçaria a posição das religiões dando-lhes uma base factual.
A imortalidade não seria mais apenas um pressuposto de fé.
Por tudo isso, o que Kardec faz é validar todas as religiões como possuidoras de verdades, mas ao mesmo tempo submete todas elas a uma crítica racional, desencantando-as de seus mistérios, tornando natural o sobrenatural, “dessacralizando” (fazendo perder o caráter sagrado) a comunicação com o mundo espiritual.
O espiritismo democratiza a religião, a racionaliza, reconduzindo-a para o patamar do cotidiano.
Assim, a religião é uma forma de ser e estar no mundo que não se pode simplesmente deixar de lado, porque constitui parte integrante da nossa consciência. Mudar isso demanda um processo doloroso e tem que ser muito lentamente e conscientemente, para cumprir o objetivo de crescimento e evolução.
Na Doutrina Espírita, apresentam-se em vários aspectos e em varias passagens, conotações e estruturas cristãs, dificultando o esclarecido quanto a sua real condição.
Para muitos, Kardec teria a missão de fazer uma revisão do cristianismo, sob a supervisão do próprio Cristo, que é segundo muitos espíritas aceitam, o Espírito da Verdade. “Venho como outrora, entre os filhos desgarrados de Israel, trazer a verdade e dissipar as trevas”.
Nesse contexto assemelha-se a uma nova religião cristã.
Entende-se que mesmo trazendo paralelos cristãos, a sua intenção era a de legitimar as verdades trazidas pelos espíritos mais que sugerir que a Doutrina Espírita viesse a ser a nova religião cristã, libertadora da opressão da equivocada Igreja católica.
Demandará certo tempo ate que se tenha condições de discernir mais acertadamente sobre a real estrutura da Doutrina Espírita.
Consola os corações como uma religião, esclarece as mentes ávidas de respostas com sua filosofia racional e esclarece o sobrenatural pela luz da razão e da ciência demonstrando que tudo esta sob as mesmas leis físicas.
No livro Obras Póstumas – capitulo: Das manifestações dos Espíritos lemos:
Longe de perder qualquer coisa de sua autoridade por passarem os fatos qualificados de milagrosos à ordem dos fatos naturais, a religião somente pode ganhar com isso;
primeiramente, porque, se um fato é tido falsamente por miraculoso, há aí um erro e a religião somente pode perder, se apoiar num erro, sobretudo se obstinasse em considerar milagre o que não o seja;
em segundo lugar, porque, não admitindo a possibilidade dos milagres, muitas pessoas negam os fatos qualificados de milagrosos, negando conseguintemente, a religião que em tais fatos se estriba.
Se, ao contrário, a possibilidade dos mesmos fatos for demonstrada como efeitos das leis naturais, já não haverá cabimento para que alguém os repila, nem repila a religião que os proclame.
Nenhuma crença religiosa, por lhes ser contrária, pode infirmar os fatos que a Ciência comprova de modo peremptório.
Não pode a religião deixar de ganhar em autoridade acompanhando o progresso dos conhecimentos científicos, como não pode deixar de perder, se conservar retardatária, ou a protestar contra esses mesmos conhecimentos em nome dos seus dogmas, visto que nenhum dogma poderá prevalecer contra as leis da Natureza, ou anulá-las.
Um dogma que se funde na negação de uma lei da Natureza não pode exprimir a verdade.
O Espiritismo, que se funda no conhecimento de leis até agora incompreendidas, não vem destruir os fatos religiosos, porém sancioná-los, dando-lhes uma explicação racional.
Vem destruir apenas as falsas consequências que deles foram deduzidas, em virtude da ignorância daquelas leis, ou de as terem interpretado erradamente.
Por isto, a Doutrina Espírita, sem ser uma religião, conduz essencialmente as ideias religiosas, desenvolvendo-as naqueles que não as tem e fortificando-as naqueles em que vacilam.
Recobrando a lucidez dos iludidos diante dos ditames teológicos e do obstrucionismo clerical, traduzindo o sobrenatural para o natural, da mesma forma que ilustres cientistas traduzem a matéria em energia.
A religião encontra, portanto, um apoio no Espiritismo, não por certo aos olhos dessas inteligências míopes, que veem toda a religião na doutrina do fogo eterno, na letra mais que no espírito, mas sim aos que a contemplam em relação à grandeza e a majestade de Deus.
Por: Adams Auni
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