8.1.24

A palavra Probreza

A palavra Pobreza foi usada e abusada até perder o seu real significado. 

E, num certo sentido, a perversão semântica é bem-vinda: já ninguém é pobre como antigamente e, acima de tudo, a memória da miséria dos nossos pais e avós está guardada em baús que não se abrem.

Se é difícil perceber claramente o conceito de pobreza digamos que em Portugal a situação já foi muito pior.

Tenho um amigo da minha geração que conta,  divertido,  que só percebeu que era pobre já adolescente.  

Toda a sua família e todas as pessoas com quem convivia, amigos, vizinhos e parentes viviam da mesma forma. Portanto,  somente no liceu ao conhecer meninos de famílias mais abastadas pode comparar a maneira como vivia e tudo o que não tivera e que até então fizera falta nenhuma. 

Sua avó materna até mesmo era apontada como uma mulher " de posses" porque possuía uma vaca e vendia leite na vizinhança; leite que ela acrescentava água para render mais.  O marido da leiteira , seu avô,  tinha um chapéu e um fato já muito usado e mesmo assim era considerado um senhor elegante. 

Longe de sermos ricos estávamos,  porém,  bastante acima da dita linha da pobreza. 

Nunca faltou comida e a ideia que tenho é que vivíamos com conforto e alguns pequenos luxos, como ter criadas em casa.

Porém,  a ideia de poupança sempre esteve presente. 

Nada era deitado fora sem que houvesse hipótese de ser aproveitado.

Sem ser costureira talentosa a avó Luísa sabia cerzir as meias e peúgas na perfeição,  sempre com a ajuda de um ovo de madeira e um dedal. 

Colarinho e punhos puídos ganhavam nova vida ao serem virados e costurados novamente.  

Calças demasiado curtas viravam calções para o verão.  

Lençóis velhos se transformavam em trapos para a limpeza. 

Restos de sabão azul e branco eram guardados até atingir a quantidade necessária para fazer uma boa barrela. 

Na alimentação havia verdadeiros milagres gastronômicos. 

Restos de carne assada surgiam em aproveitamentos como empadão ou massa de croquetes. 
O cozido à portuguesa servia mais de uma refeição e terminava como sopa com o restinho das carnes desfiada. E como era bom! 

Sobras de arroz invariavelmente voltavam à mesa sob a forma de bolinhos de arroz. Juntavam ovos , muita salsa picada , cebola bem fininha e um pouco de farinha e eram fritos.  

O pão velho ganhava vida em açordas ou rabanadas.  

Até o leite talhado e acontecia com frequência ao ferver era aproveitado. Ia ao lume com açúcar e recordo que punham um pires no fundo do tacho e ia cozer lentamente até adquirir uma bela colocação acastanhada e comíamos como sobremesa com requeijão. 

O tio Albino sabia cortar garrafas com uma perfeição impressionante.  
E fazia tampas em madeira à medida. Eram excelentes para guardar grãos,  açúcar, café e sal na despensa. 

A tia Maria da Graça aproveitava latas grandes como as do leite em pó.  Forrava-as com plástico que comprava à metro e decorava-as com flores de feltro.

Sempre considerei normal ser poupado nas mínimas coisas. 

Apagar as luzes ao sair da divisão da casa é uma mania. 

Cresci assim. Fui educado assim. 

No poupar está o ganho. 

Em pequeno lembro de sair com a avó Luísa e dizer que tinha sede e propunha comprar uma garrafa de água num café.  Ela dizia sempre: bebes quando chegares à casa. É mais barato...

Cito um texto de Maria Filomena Mónica,  no seu livro " Os Pobres" :
" No meu caso,  como na maioria das famílias de classe média urbana, os Contactos com os pobres resumiam-se às relações com as criadas que viviam em casa dos nossos pais.  
De uniforme preto e avental branco com rendas, serviam os pratos do dia como a patroa lhes tinha ensinado . 
Ouviam conversas íntimas,  sem que ninguém se preocupasse.  
Era como se não existissem. "

Conheci uma família em que as senhoras a meio da conversa mudavam do português para o francês.  
A primeira vez que presenciei a cena achei bizarro. 
Era em casa de uma colega de escola,  a Madalena.  
E indaguei a razão; Ah, é para as criadas não perceberem...essa gente é muito curiosa...

ESSA GENTE...foi quando me dei conta que havia eles e os outros. 
E os outros geralmente eram " essa gente".

Sempre achei curioso o verdadeiro sistema de classes sociais em Portugal. 

E confesso que existem tantos " códigos " de postura,  etiqueta e linguagem que para um estrangeiro deve soar estranho. 

Como saber se deve dizer prenda ou presente? 
Vermelho ou encarnado? 
Magoar-se ou aleijar-se? 
E se deve ou pode cumprimentar com um ou dois beijinhos?

Não sei se estas filigranas de comportamento ou indicadores de estatuto social são normais em todo o país ou são um fenómeno lisboeta. 

Como não tenho sobrinhos ainda hoje colegas e amigos dos meus filhos tratam-me por tio...

Na foto o meu pai e sua prima preferida. 
A prima Mena era rica e o meu pai,  Sebastião,  era o pobre. 

A diferença de situação econômica na mesma família,  por vezes, ainda podia ser mais complicada que em outro tipo de relações humanas.

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