A palavra Pobreza foi usada e abusada até perder o seu real significado.
E, num certo sentido, a perversão semântica é bem-vinda: já ninguém é pobre como antigamente e, acima de tudo, a memória da miséria dos nossos pais e avós está guardada em baús que não se abrem.
Se é difícil perceber claramente o conceito de pobreza digamos que em Portugal a situação já foi muito pior.
Tenho um amigo da minha geração que conta, divertido, que só percebeu que era pobre já adolescente.
Toda a sua família e todas as pessoas com quem convivia, amigos, vizinhos e parentes viviam da mesma forma. Portanto, somente no liceu ao conhecer meninos de famílias mais abastadas pode comparar a maneira como vivia e tudo o que não tivera e que até então fizera falta nenhuma.
Sua avó materna até mesmo era apontada como uma mulher " de posses" porque possuía uma vaca e vendia leite na vizinhança; leite que ela acrescentava água para render mais. O marido da leiteira , seu avô, tinha um chapéu e um fato já muito usado e mesmo assim era considerado um senhor elegante.
Longe de sermos ricos estávamos, porém, bastante acima da dita linha da pobreza.
Nunca faltou comida e a ideia que tenho é que vivíamos com conforto e alguns pequenos luxos, como ter criadas em casa.
Porém, a ideia de poupança sempre esteve presente.
Nada era deitado fora sem que houvesse hipótese de ser aproveitado.
Sem ser costureira talentosa a avó Luísa sabia cerzir as meias e peúgas na perfeição, sempre com a ajuda de um ovo de madeira e um dedal.
Colarinho e punhos puídos ganhavam nova vida ao serem virados e costurados novamente.
Calças demasiado curtas viravam calções para o verão.
Lençóis velhos se transformavam em trapos para a limpeza.
Restos de sabão azul e branco eram guardados até atingir a quantidade necessária para fazer uma boa barrela.
Na alimentação havia verdadeiros milagres gastronômicos.
Restos de carne assada surgiam em aproveitamentos como empadão ou massa de croquetes.
O cozido à portuguesa servia mais de uma refeição e terminava como sopa com o restinho das carnes desfiada. E como era bom!
Sobras de arroz invariavelmente voltavam à mesa sob a forma de bolinhos de arroz. Juntavam ovos , muita salsa picada , cebola bem fininha e um pouco de farinha e eram fritos.
O pão velho ganhava vida em açordas ou rabanadas.
Até o leite talhado e acontecia com frequência ao ferver era aproveitado. Ia ao lume com açúcar e recordo que punham um pires no fundo do tacho e ia cozer lentamente até adquirir uma bela colocação acastanhada e comíamos como sobremesa com requeijão.
O tio Albino sabia cortar garrafas com uma perfeição impressionante.
E fazia tampas em madeira à medida. Eram excelentes para guardar grãos, açúcar, café e sal na despensa.
A tia Maria da Graça aproveitava latas grandes como as do leite em pó. Forrava-as com plástico que comprava à metro e decorava-as com flores de feltro.
Sempre considerei normal ser poupado nas mínimas coisas.
Apagar as luzes ao sair da divisão da casa é uma mania.
Cresci assim. Fui educado assim.
No poupar está o ganho.
Em pequeno lembro de sair com a avó Luísa e dizer que tinha sede e propunha comprar uma garrafa de água num café. Ela dizia sempre: bebes quando chegares à casa. É mais barato...
Cito um texto de Maria Filomena Mónica, no seu livro " Os Pobres" :
" No meu caso, como na maioria das famílias de classe média urbana, os Contactos com os pobres resumiam-se às relações com as criadas que viviam em casa dos nossos pais.
De uniforme preto e avental branco com rendas, serviam os pratos do dia como a patroa lhes tinha ensinado .
Ouviam conversas íntimas, sem que ninguém se preocupasse.
Era como se não existissem. "
Conheci uma família em que as senhoras a meio da conversa mudavam do português para o francês.
A primeira vez que presenciei a cena achei bizarro.
Era em casa de uma colega de escola, a Madalena.
E indaguei a razão; Ah, é para as criadas não perceberem...essa gente é muito curiosa...
ESSA GENTE...foi quando me dei conta que havia eles e os outros.
E os outros geralmente eram " essa gente".
Sempre achei curioso o verdadeiro sistema de classes sociais em Portugal.
E confesso que existem tantos " códigos " de postura, etiqueta e linguagem que para um estrangeiro deve soar estranho.
Como saber se deve dizer prenda ou presente?
Vermelho ou encarnado?
Magoar-se ou aleijar-se?
E se deve ou pode cumprimentar com um ou dois beijinhos?
Não sei se estas filigranas de comportamento ou indicadores de estatuto social são normais em todo o país ou são um fenómeno lisboeta.
Como não tenho sobrinhos ainda hoje colegas e amigos dos meus filhos tratam-me por tio...
Na foto o meu pai e sua prima preferida.
A prima Mena era rica e o meu pai, Sebastião, era o pobre.
A diferença de situação econômica na mesma família, por vezes, ainda podia ser mais complicada que em outro tipo de relações humanas.